segunda-feira, 10 de abril de 2017

CAUSA JUSTA!

O grupo de artistas que está “habitando” a casa-grande do engenho Guaporé, “instalou” ontem, nas paredes do velho casarão, a onça que, relatada por Nilo Pereira, criou a lenda da Onça de Ceará-Mirim, que a ACLA hoje dá conhecimento para os ceará-mirinenses.
A tela que ilustra a matéria, é uma pintura do mestre Fabio Di Ojuara Ojuara, grande líder e artista.

O CASO DA ONÇA QUE DEU LITERATURA


Michelle Paulista
Texto é da Professora de Língua Portuguesa e Literatura das redes estadual e municipal de Natal e doutoranda pelo PpGEL-UFRN.
Está disponibilizado no sítio - http://agorarn.com.br/…/artigo-o-caso-da-onca-que-deu-lite…/
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[...] Nilo, O barão de Guaporé, “valia por uma Universidade”, nas palavras do escritor, acadêmico e ensaísta Manoel Onofre Jr. Em 1992, Veríssimo publica “NILO PEREIRA – CARTAS DE EMOÇÃO E DE HUMOR”, pela Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, síntese de uma amizade de trinta anos, grafada em correspondências que, na opinião de Veríssimo, trouxe-lhe “maiores conhecimentos literários e culturais”.
Em uma das cartas publicadas no referido volume, há uma que chama à atenção pela intertextualidade que estabelece com o célebre romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. No famoso romance realista, Brás Cubas, em delírio, acha-se “cavalgando” em um imenso hipopótamo, a ir em busca da origem dos séculos, sobre planícies de neve… “Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. — Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos”.
Não faremos considerações acerca dos aspectos filosóficos/estéticos/literários que permeiam o excerto machadiano; citamo-lo apenas como referência. Nosso deleite é o diálogo Nilo-Veríssimo. Com todos os perdões, o bruxo do Cosme Velho será matéria para outra prosa.
A ONÇA
Certamente que o episódio que intitula este artigo é mais pitoresco e – ousamos dizer – verossímil. Não pela narrativa propriamente, posto que há contornos literários. Mas porque desdobra-se de um acontecimento real: uma onça que fugiu de um circo em Ceará Mirim, nos idos de 1951. Sobre esse acontecimento, Nilo escreve uma carta, qualificada por Veríssimo como “deliciosa”. Eis um trecho:
“Fiquei imaginando um animal de proporções gigantescas – uma cachorra bíblica ou besta apocalíptica, ─ sobre o vale, uivando de cólera. Os olhos chispam de rancor, as patas sussurram iras sobre os canaviais, a cauda espadana rancor como um látego dantesco. Depois desse delírio machadiano, o felino volta ao natural. E é neste momento que chegamos nós, os caravaneiros, para liquidar o monstro. A hora é crucial. Não pode haver um instante de indecisão. A onça olha-nos de sua toca, sinistra e hedionda. Alçamos a mira. E, ou fazemos fogo, rápidos e firmes, ou o animal, como um demônio alado, se precipita sobre os homens bons, que defendem o vale. Os tiros atingem o alvo. Um uivo de dor atroa os ares. E o vale todo se enche de um bafo morno de ira e vingança. A onça estende sobre o canavial o seu negrume derrotado”. (…) Basta de tanta imaginação, caro Veríssimo. Essa onça já arrancou muita literatura”. E encerra, sempre muito estilístico: “(…) aqui pingo o ponto final, com um fel no abraço do velho amigo da onça, Nilo”. (Carta de Nilo Pereira a Veríssimo de Melo, em 23 de março de 1951).
Homem de leitura que era, Nilo chegou a receber prêmio na Academia Brasileira de Letras (afora ele, somente o mestre Cascudo). Não se discute que lera com “independência” o clássico que conta a história de Brás Cubas. Numa aventura narrativa bem-sucedida, a meu ver, o barão tece um enredo mesclado de elementos místicos/religiosos com aspectos épicos, tendo os caravaneiros (nos quais se inclui) como vencedores. Final feliz! O que intentava Nilo? Metaforizar alguma peleja política? Ou materializar alguma aventura vivida ou sonhada durante a infância nos canaviais? Talvez simplesmente(?) a balbúrdia que se estabelecera numa pacata e provinciana cidade do interior, ausente de expedientes, quando de um acontecimento tão inusitado. Se tentarmos responder, a graça desaparece. Fica a cargo do leitor.
É de muita felicidade, por fim, a descrição que Veríssimo faz da visão de Nilo, num belo tracejo semântico: “É que ele, apesar de ter sido operado de catarata, ainda vê melhor do que qualquer um de nós. Vê perscrutando. Mais por dentro que por fora”. Decerto, só os de visão de metades, visão privilegiada (veem simultaneamente dentro e fora), são capazes de delirar acordados.

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